O Clóvis Rossi, que eu tanto gosto de criticar, recebeu do Presidente Lula, que ele por sua vez tanto gosta de criticar, um presente pelo qual não esperava (A Paella de Lula). Lendo seu relato do incidente em que quebrou as costelas quando tentava se aproximar do Lula num evento em Madri e dos desdobramentos subsequentes, fico aqui imaginando as reflexões que foram desencadeadas na cabeça do Clóvis, quando relata toda a atenção a ele dispensada tanto por seus colegas jornalistas de outros veículos, teoricamente concorrentes, quanto, e neste caso ainda mais espantoso, pelas equipes do Itamarati, da Presidência da República, do médico do Presidente e pelo próprio Presidente, pessoalmente.
Claro, nem de longe insinuo que o jornalista usa o episódio pra se auto promover, isto seria coisa de amador principiante. O Clovis já tem tanta rodagem que isto não deve nem de longe passar pela sua cabeça e, além do mais, a estória é mesmo muito boa pra deixar de ser contada sob o risco de ser lida como pavoneamento. Não é isso definitivamente. Mas o espanto do jornalista com o tratamento a ele dispensado por quem não tem motivo nenhum para tal, denota um traço do seu caráter que não passou despercebido e que pode ser sumarizado no fato de que, se a situação fosse contrária, ele não teria pensado em cobrir de cuidados alguém que ele considera que não vai muito com a sua cara. Não lhe ocorreria este golpe de mestre. Mas ao Presidente ocorre, e por isto ele é o “cara”. Fico imaginando que novamente o Lula deu uma daquelas cartadas de gênio e desta vez pra cima justamente do Clovis que o desanca na Folha uma vez sim e outra também. Como este muito bem fechou no seu artigo, o Lula é um ser humano notável, enquanto nós, inclusive o jornalista, somos simples mortais.
Primeiramente queria comentar as metáforas que ele usa para ilustrar para nós que o lemos o seu trabalho e de outros jornalistas “concorrentes” quando diz que “nenhum de nós acha que é preciso dar uma facada nas costas do concorrente para fazer melhor o seu próprio trabalho, sem adversários” . Ele talvez pressupõe que achemos, pela violência verbal de algumas asserções dos jornalistas, que eles vivem se pegando e disputando entre si por exclusividade, pelo furo individual, o que seria facilitado pela inexistência de adversários. Mas acho que no fundo, ao negar esta impressão que ele acha que possamos ter, é mais ou menos isso mesmo como ele vê o seu trabalho: um negócio meio violento e às vezes desleal, parcial, superficial nas críticas e cheio de egos em disputa.
Mas voltemos à melhor parte do episódio. O Lula é muito inteligente e sabe que uma boa, senão a melhor maneira de desarmar um oponente é surpreendendo-o. No caso, com todo o tratamento que foi dispensado ao Clovis, inclusive com os requintes da visita do Presidente, que lhe manda uma “quentinha”, acompanhado de sua “entourage” ao leito do convalescente. Foi um prato servido por um refinado “chef” ao Clóvis. Eu queria ser um mosquito pra observar a cena que se passou naquele quarto onde certamente o Presidente exerceu todo o seu charme de quem já está acima de tudo e de todos, inclusive e sobretudo do Clóvis todo quebrado ali, imóvel, sem poder nem digitar direito as suas costumeiras estocadas no barbudo. É visível a caturrice do Clóvis nos detalhes que deixa escapar quando, por exemplo, usa o verbo “ordenei” dirigido ao Presidente: “senta aí e escreve o resto, vai”. Senta aí? Escreve, vai!? Verbos todos no imperativo para sugerir ao Presidente que ele completasse o texto que o Clóvis acabara de iniciar justamente a respeito de Lula. Não é qualquer um que dá ordens a um presidente: o cargo intimida mesmo aos mais desabridos e insolentes. Mas não ao Clóvis…
É engraçado também quando ele explica esta relação próxima e cordial com a pessoa física dos presidentes, citando FHC, que também criticava “impiedosamente”, mas com quem tinha uma relação mais formal ensejada “pela idade de cada um”. Imagino que quis dizer que o Lula, mais jovem, o Clovis conhece desde os tempos em que ele “é que podia mandar quentinhas pro Lula e não o contrário”. Senti nostalgia de um tempo em que a posição dos dois era outra… e um pouco, por que não dizer, de despeito, como quem diz: “ô Lula, hoje você está por cima da carne seca, mas lembra que tu já teve muito por baixo, a ponto de até eu poder te mandar umas quentinhas que você iria agradecer por ganhar…”
Eu acho que o Clovis estava no fundo meio incomodado com o episódio todo porque ele teve que reconhecer para si mesmo que o barbudinho é mesmo um caso único de competência e habilidade, goste-se ou não dele, concorde-se ou não com seu governo, e que talvez reste muito pouca coisa para criticar, porque, pelo jeito, ele tem mesmo um dom que poucos tem, um conhecimento meio instintivo do que fazer nas mais diversas situações, inclusive na mais improvável de todas que ele ocupa desde que despontou em 1979: a de Presidente. Ele deve ter pensado: “este Lula é tão surpreendente, que por vezes eu fico inseguro pensando que um dia minhas críticas se revelarão muito equivocadas e que ele, o Lula, estava vendo coisas que eu não conseguia ver…”
Mas o Clóvis, mesmo com as costelas quebradas, não ia dar o braço a torcer assim fácil e pespegou o Lula na saída: “você é um péssimo presidente, mas um ser humano notável”. Chamou “o cara” de péssimo! Na cara e depois de tanta atenção! Ô Clóvis, quero imaginar que você agradeceu, mas porque não se sentiu confortável de demonstrar gratidão no seu relato? Isto sim é notável! O Lula deve ter dado um sorrizinho maroto e pensado: “ganhei mais um”. Aposto que quando o Clóvis ficou sozinho no quarto, deitado imóvel na cama e com dores, deve ter pensado: “é… o sujeito é mesmo o cara!” E sorriu, meio emocionado, meio contrariado por ter como presidente este retirante nordestino com um décimo da instrução dele, todo errado, que depois de ter conquistado o Brasil, agora se mete nas altas rodas do mundo todo prosa! As mesmas em que ele, até bem pouco tempo atrás, nunca imaginaria que o Lula iria botar no bolso, também!!